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Miopia: Estamos arriscando a visão das nossas crianças?

Mais do que um mero motivo para usar óculos, a miopia tem se tornado um problema de saúde pública mundial. As estatísticas de 2010 mostravam que 27% do mundo era míope, sendo que 2,8% destes eram portadores de alta miopia. Já as projeções da OMS para 2050 são de que a miopia atinja 52% da população, com 10% de alto míopes. Estes 10% vão corresponder a quase 1 bilhão de pessoas. Um bilhão.

Esse aumento crescente da miopia mostra que se trata de um problema do mundo moderno. Estudos já provaram que pessoas da mesma etnia tem maior ou menor incidência de miopia a depender do seu estilo de vida: os moradores urbanos, com mais acesso à educação e à tecnologia, tem maior prevalência de miopia. Isto sugere que a questão não seja somente genética. O aumento das atividades indoors (em ambientes fechados), com excesso de esforço visual para leitura – celulares, tablets, computadores, livros -, associado a uma redução da exposição a luz solar, parecem ser dos principais fatores envolvidos. Claro que a influência genética também é importante, onde filhos de um ou dois pais míopes têm mais chances de desenvolver miopia.

A miopia pode ser decorrente de alterações na córnea e/ou no cristalino, mas a maioria dos casos é devido a um comprimento axial aumentado, isto é, um globo ocular “comprido”. Isso faz com que a imagem de um objeto distante seja focalizada antes da retina, causando borramento na visão. Ao contrário, as imagens de objetos próximos ao olho (como as palavras em um livro, ou uma foto no celular) são focalizadas na retina, permitindo boa definição. É por isso que míopes tem dificuldade para enxergar de longe, mas enxergam melhor de perto do que os não míopes.

O excesso de esforço visual para perto em crianças, especialmente nas telas de celulares e tablets, acaba por estimular um alongamento no comprimento axial do globo ocular ainda em desenvolvimento, gerando a miopia. Isto, somado a uma baixa exposição ao sol devido a redução nas atividades ao ar livre, acelera ainda mais o processo. O sol é importante para a formação das ligações colágenas da córnea e da esclera (“branco do olho”), permitindo o correto desenvolvimento do olho.

E qual é o problema nisso tudo? Não é só usar óculos e pronto?

Não, não é só isso. A questão é que a miopia pode causar lesões oculares que ameaçam a visão. Definimos miopia como graus a partir de “-0,50”, mas acima de “-6,0” graus chamamos de alta miopia. São os alto míopes que se encontram em maior risco para as complicações que podem deixar sequelas na visão, a chamada “miopia patológica”. Quanto mais precoce o início da miopia em crianças, maiores os riscos de atingirem o patamar de alto míopes. E, apesar de este ser o grupo de maior risco, sabemos que algumas lesões pela miopia acontecem mesmo em pessoas com graus menores. Catarata e glaucoma são algumas das complicações possíveis nos míopes, mas a maioria dos problemas se concentra na retina.

Vamos pensar juntos. A retina é a parte do olho que contém os neurônios da visão. Ela se localiza no fundo do globo ocular, é como se fosse o “forro interno” do olho. Se o olho é muito comprido (míopes), para forrar aquele “olhão todo”, a retina precisa se esticar. Quando se estica, ela afina. Pensem no que acontece quando esticamos um elástico: ele aumenta em comprimento, mas diminui em espessura, igual a retina do míope. E qual é o problema em ter uma retina fina? Ela fica mais frágil, portanto mais susceptível a lesões. Não queremos ter lesões nos neurônios da visão, certo? Não parece ser uma boa coisa, e não é mesmo… Eu costumo explicar isso aos meus pacientes comparando com o cérebro: quando uma pessoa tem um AVC (“derrame cerebral”), ela geralmente fica com alguma sequela, não é? Pois o mesmo acontece quando ocorre uma lesão de retina: grandes chances de uma sequela visual.

Hemorragias, edemas (“inchaços”), roturas e buracos, afinamentos muito intensos, desorganização na estrutura da retina e até descolamento de retina são as principais complicações possíveis da miopia. Isso sem falar nas “moscas volantes”, pontinhos ou manchas acinzentadas que ficam constantemente passando pela visão e que são mais comuns nos míopes. A boa notícia é que algumas destas lesões podem ser tratadas para evitar perdas na visão: é o caso das roturas e buracos periféricos na retina, cujo tratamento com laser (um procedimento de consultório) evita a evolução para o temido descolamento de retina. Outras alterações, como as hemorragias e edemas de mácula (mácula é a parte central e mais importante da retina), podem ser tratadas com injeções intraoculares de medicações que ajudam na sua involução, mas que, infelizmente, não curam o problema: diminuem a perda visual, mas uma sequela é bem provável. Cirurgias oculares são necessárias em alguns casos, como no descolamento de retina, condição onde a retina sai do lugar e o paciente precisa ser operado com urgência para reestabelecer a visão. Dependendo do tamanho do descolamento e do tempo para a cirurgia, a recuperação visual pode ser muito boa ou quase nenhuma. E, infelizmente, temos o caso das lesões para as quais ainda não temos nenhum tratamento para oferecer. É o caso das atrofias de retina (áreas muito finas na retina, que perdem sua função de enxergar) e de algumas desorganizações na estrutura da retina.

Mesmo usando óculos ou lentes de contato no grau certo, por maior que ele seja, a visão dos alto míopes muitas vezes não chega mais aos 100%. Operar a miopia não é uma opção para melhorar a visão: as cirurgias refrativas só corrigem o grau, só tiram os óculos; elas não consertam uma retina defeituosa… Estas cirurgias precisam ser muito bem indicadas, especialmente nos alto míopes. Existe um aumento no risco de descolamento de retina pelo procedimento, portanto o exame de mapeamento de retina por um retinólogo antes de operar é imprescindível, para pesquisar e tratar eventuais roturas. O risco de complicações na retina pela miopia não desaparece após a cirurgia! O paciente pode ficar com o grau zerado, mas ele sempre terá um olho comprido e uma retina fina, portanto deve seguir acompanhando anualmente com retinólogo (oftalmologista especialista em retina).

E existe prevenção para isso tudo? Existe prevenção para a miopia?

A resposta é SIM! Consultas regulares com oftalmologista para todas as crianças a partir de 1 ano de vida, respeitar as recomendações da Sociedade Brasileira de Pediatria* (veja o link no final deste artigo!) para uso de telas na infância, estimular atividades ao ar livre, dar pausas na leitura e no uso de eletrônicos para olhar para longe por alguns minutos são as principais recomendações. Para as crianças que já tem miopia, o uso dos óculos é uma forma de tratamento, podendo ser associados a outros como lentes de contato especiais e colírio de atropina. A atropina tem se mostrado eficaz no remodelamento do desenvolvimento ocular, conseguindo controlar a progressão da miopia em alguns casos. Seu uso, bem como do restante dos tratamentos disponíveis, precisa ser indicado e acompanhado por oftalmologista, pois existe o risco de efeitos colaterais.

Voltando ao começo do texto, lembram que falamos em quase 1 bilhão de alto míopes em 2050? Pois agora imaginem que uma parcela destes 1 bilhão terá uma perda de visão tão importante que não será mais capaz de trabalhar em seu antigo emprego e precisará usar recursos da saúde para seus tratamentos oftalmológicos. Isso pode acontecer desde cedo, em pacientes ainda jovens, que irão demandar recursos financeiros da saúde e de auxílios por muitos anos. Então, além da questão psicológica e familiar: qual será o custo da miopia para a nossa sociedade?

Link: Recomendações da Sociedade Brasileira de Pediatria para o tempo de exposição a telas na infância.

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Médica Oftalmologista

Especialista em Retina e Vitreo 

Atendimento Pediátrico e Adulto

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